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Buenos Aires – Verão de 2011 - Fred Coelho

Charles e sua namorada nunca saíram do Brasil. Não usam roupas da moda, não estão com ipods, não ostentam nem tatuagens e nem óculos escuros. Pela primeira vez, conseguem juntar um dinheiro e pagam suas passagens e pacote da excursão em 12 vezes sem juros. Os décimos-terceiros dos dois guardados em um natal magro seguido de um réveillon na casa da sogra e, finalmente, a viagem ao exterior. Buenos Aires. A Argentina é logo ali, ouvia Charles de seus amigos. Buenos Aires nunca sai de moda, lia a sua namorada na Caras. No verão é mais barato, diziam todos aos dois. A cidade do obelisco e do doce de leite é a plataforma de início quando não se tem grana para irmos direto para a Disney. Charles queria viajar para outro país e Buenos Aires é bonito. Afinal, parece a Europa.

Charles não fala espanhol ou qualquer outra língua, apesar de ostentar um nome internacional. Quando ele fala “Charles”, o sotaque de Piracicaba torna-o quase um inglês operário de Manchester. Ele sabe que os últimos anos na escola técnica valeram a pena, que o emprego novo veio junto com a possibilidade de um casamento e de uma casa nova. Sua namorada não vai deixá-lo escapar, já era. Antes disso tudo, antes de ter que comprar televisão de plasma, abrir crediário de móveis e fazer um curso de especialização em contabilidade, Charles quis viajar para conhecer o mundo. Guarujá. Rio de Janeiro. Buenos Aires. Miami, quem sabe. O sonho não tem limite.

Charles tem um computador com internet banda larga, porque gosta muito de navegar e está no facebook após a crise do orkut. Vê filmes piratas, mas também vai ao cinema quando dá. Ele se informa pela internet sobre a cidade que ele visita, sua primeira vez fora do Sudeste. Charles estuda e descobre um site em português com dicas sobre os bons restaurantes. Há um que promete ambiente agradável e comida farta. Charles descobre pela wikipédiaque o bairro do restaurante é o quente do turismo mundial. O peso argentino está fraco frente ao real. Um breve almoço, uma extravaganza, por que não? E Charles vai ao restaurante da moda com sua namorada.

O restaurante está cheio, há uma quase aglomeração na porta. Calor. Todos falam alto. Noventa por cento dos que esperam são brasileiros (no fundo, todos somos Charles). Ele resolve falar, mas recua quando a atendente Julieta lhe diz que a mesa pode demorar quarenta minutos. Charles se abate. Viera de longe, confiara na internet. Ele vacila. Sua namorada insiste em comer ali. Ele decide aguardar. Charles espera, um pouco constrangido dentre seus compatriotas de todas as idades e classes. Como Charles, todos ali querem o mesmo, independente de grana ou região do Brasil. Quem não quer se sentir exclusivo, feliz e bem servido na viagem até a cidade bonita, barata, educada, espalhada e perto de casa, a camarada BAS? Mas Charles, ironicamente, verá pouco da cidade. Seu percurso de excursão só permite uma tarde livre dele com a namorada. E ele escolhe justamente o restaurante da moda. Mesmo que a carne seja muito crua para eles e as porções pequenas, mesmo que eles não bebam vinho, mas sim refrigerante, ele estava lá. Nos outros dias, Charles ficará como gado andando pela Florida, vendo a Plaza de Mayo e rodando as ruas e a pracinha de San Telmo. Mas nesse dia, ele estava fazendo a viagem DELE. Charles gostaria de ir além?

Em Buenos Aires, neste verão, a profecia de Elio Petri se confirma e a classe operária vai ao paraíso. Entendemos de forma real a experiência de uma população que ascendeu economicamente, que enriqueceu e criou novas fronteiras de lazer no seu cotidiano. Entendemos, em suma, uma das faces dos últimos anos de pleno emprego e de crediário farto, da explosão da tecnologia popular gerando em telas digitais o ecletismo estético, a educação truncada e os gostos conservadores das novas classes médias e altas do Brasil. A cidade fala português em todos os ambientes, de todas as formas. Quanto mais ricos, mais alto falam, mais espaçosos são (nos museus). Quanto mais pobres, mais alto falam, mais espaçoso são (no calçadão turístico do centro). Somos espaçosos. E falamos alto. É o verão da Classe A, B, C, D, com seu dólar fraco e seu real forte, com os pacotões de agência de viagem e os bônus de empresas no fim de ano, com os feriados longos e as liquidações.

O brasileiro, em sua ampla maioria, é provinciano. Ele precisa se sentir em casa em qualquer lugar. A saudade do feijão da mamãe que traz de volta o jogador de futebol, a ansiedade frente à fila do aeroporto como se estivesse no bar da sua esquina, a coletivização da excitação em blocos de senhoras e rapazes invadindo lojas e parques, a transformação instantânea de qualquer lugar em carnaval ou micareta, a prepotência financeira, a falta de cerimônia com os hábitos e a cultura alheia. E isso não é uma via de mão única. Somos instados e nos sentirmos “bem” nos estabelecimentos da cidade. Em qualquer loja que você entre, toca música brasileira. Sofisticada e popularíssima. O Táxi toca o novo clássico sertanejo. O bar cool toca o disco Casa de Samba (e uma brasileira canta junto e alto em sua mesa). A loja de departamento toca funk. Os jornais noticiam os gols de Neymar. Livros de Clarice Lispector dominam mesas de lançamento nas melhores livrarias. O Brasil ocupa um vasto espaço no verão portenho. Buenos Aires tornou-se perto demais. E Charles também está lá. Pronto para se expandir a partir da expansão do nosso país. Charles é uma crônica do Brasil de hoje: sempre para cima, mesmo que para qualquer lugar, mesmo que sem jeito ou trajeto definido. Uma população que aprende a voar se jogando no abismo. Voa Charles, voa.

janeiro 2011



FRED COELHO é historiador, ensaísta, pesquisador e professor, com vários livros publicados.


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