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Inteligência Artificial na Criação Artística: uma reflexão sobre ética e autonomia - Felipe Lacerda

Nas colunas anteriores, apresentamos dois dos maiores temores da comunidade intelectual sobre o desenvolvimento da I.A.:

(1) a capacidade, inédita na história, de máquinas criarem produtos culturais originais, baseados na recombinação de toda a nossa história criativa universal e a ameaça que isso representa para a subjetividade humana e,

(2) o poder, também inédito, de uma ferramenta tomar decisões autonomamente que podem, inclusive, matar indivíduos, aniquilar países ou tornar inviável a vida humana neste planeta. Como os temas são imensos, vou falar (um pouco) nas próximas duas colunas. Por hoje, falaremos de…

Inteligência Artificial e Criação Artística

O que significa para nós, seres (ainda majoritariamente) humanos, conviver com uma entidade alienígena tão poderosa moldando a criação artística?

Se a IA desenvolver autonomia criativa significativa e puder gerar obras de arte tão bem ou melhor do que os humanos, isso pode diminuir o senso de que a expressão artística, que era até agora uma característica singularmente humana?

Na medida em que há tantas ferramentas que facilitam todas as etapas do processo de produção artística, se confiarmos cada vez mais na IA para tarefas criativas, com o tempo será que as pessoas vão perder a prática e ter suas próprias habilidades criativas diminuídas?

À medida que a IA assume mais tarefas da criação, isso vai fazer com que alguns (leia-se quase todos) empregos artísticos humanos se tornem obsoletos? A expressão “starving artist” pode virar um pleonasmo?

Vejamos: uma indústria centenária (Hollywood), que já estava sendo corroída por uma indústria adolescente (Streamings), agora está sendo depenada por empresas recém-nascidas (IA), que por sua vez podem ser destruídas pela própria tecnologia que desenvolveram. Canibalismo selvagem.

Ninguém sabe o que fazer. Enquanto vários músicos estão preocupadíssimos, ao ver milhões de pessoas retrabalhando suas criações, vozes e “talentos únicos” para fazerem, com o supra sumo de suas produções artísticas, novas músicas que, em geral, são de “baixa qualidade artística” (quem mede isso?). Já outros criadores relaxam e acham que máquinas nunca competirão com eles.

Ao mesmo tempo, empresas como Google e Universal Music Group, o novo e o velho sistema, estão unidas explorando ferramentas para criar, distribuir e monetizar música gerada por IA. O maior empecilho a isso, por enquanto, é a questão legal dos direitos autorais.

Como impedir que as pessoas (e as máquinas) criem a partir do que absorveram do mundo que conheceram? Não somos todos resultado da experiência coletiva? Se alguém escutou a Madonna, não pode mais fazer música Pop? Se quem criou essa inteligência alienígena fomos nós, ela não pode então misturar as referências que aprendeu de nós?

Se o seu vizinho resolver compor a “Garota de Copacabana” com uma banda de clones sonoros e visuais de Tom e Vinicius, Frank Sinatra, João Gilberto e Stan Getz, e isso vender milhões de downloads e videoclipes com bilhões de views, de quem são os direitos autorais? Dos artistas clonados? De quem clonou? Ou da empresa de IA que colocou a criação em prática?

E se a máquina criar algo sozinha, apenas porque está programada para capturar sua atenção, e bombardear seu celular com filmes feitos sob medida para você? Você resistirá a ver seus traumas mais íntimos na tela? Resistirá a esse sequestro de atenção? Imagine um diálogo com amigos e parentes que já se foram, acontecendo para você ao vivo, sem trocadilhos …

Sim, a IA generativa tem a capacidade de simular uma conversa com alguém que já faleceu. No entanto, essa simulação fará com que a pessoa pareça estar viva, respondendo com sua bagagem cultural e estilo de fala único, agora replicado pela IA. Como mencionado em nossa coluna anterior, é provável que a simulação seja tão convincente que você não consiga distinguir a diferença.

Cinema e TV. Atores e Ascensoristas no Mesmo Elevador - que só funciona para descer?

Num tempo em que roteiros são escritos em segundos, em que clones de voz e imagem fazem mortos e vivos contracenarem, quem cria e interpreta nas telas não está muito confortável. Acham que serão os próximos profissionais extintos, depois dos operadores de código morse e dos ascensoristas.

A greve dos roteiristas nos Estados Unidos, que já dura meses, ganhou a adesão, em 13 de julho, dos 160 mil associados do sindicato dos atores ao movimento. Os criadores e intérpretes de Hollywood estão de braços cruzados com medo de serem substituídos pelo ChatGPT e por clones digitais. Será que se ficarem nessa greve por muito tempo, a indústria vai sentir falta deles? Se uma estrela do cinema pedir um trocado para o lanche, não estranhe.

Já há contratos de venda de voz e imagem de atores vivos, que poderão permanecer “atuando” em filmes novos mesmo depois de morrerem. Quem vende talvez pense que seja melhor ganhar algo agora do que nada amanhã. A alma é vendida à vista, a imagem e a voz ficarão para sempre, sem prazo.

A Solução É…

“Os humanos precisarão estabelecer os objetivos, escolher bem os dados de treinamento e contexto no qual a IA criativa opera. Só com uma governança ética global sobre o desenvolvimento e uso da IA, esses riscos podem ser mitigados. Precisa haver transparência, definição clara de objetivos, testes contínuos e a atribuição clara da autoria dessas políticas. Não é possível aceitar que o Elon, o Mark, o Sundar, o Bill, o Sam e seus colegas das BigTechs tenham direito de dizer o que pode ser criado, o que não pode, o que é bonito e o que não é. São os seres humanos que têm que estabelecer isso!”

Que lindo isso, né?

Acontece que os “humanos” são tudo menos um grupo homogêneo e coeso nos seus interesses. Digamos que todos os grandes players dos EUA, Europa e Brasil concordem em obedecer a uma governança única; o que impede que uma IA da Índia, Rússia ou China faça o próximo longa da Marylin Monroe? Nada.

A ideia de um acordo global, cumprido por todos os competidores econômicos e políticos, que estabeleça uma governança universal e neutra para organizar e proteger nosso universo simbólico, soa como um delírio. Seria realmente desejável um único árbitro ditando o que é sensato? Nossa essência, nossa beleza como espécie, reside em nossas diferenças e valores, especialmente estéticos. É por meio deles que mostramos nossa singularidade. Se nos desviamos disso, perdemos nossa humanidade. A diversidade nos enriquece, mas também nos desafia. Melhor assim do que sermos todos seduzidos por criações "incríveis" de robôs criativos, porém desprovidos de experiência de vida e emoção. E, curiosamente, "experiência de vida" e emoção são focos intensos para a próxima geração de inteligência artificial, a AGI.

Ninguém falou que ia ser fácil.

Até a próxima,

Felipe

inteligenciahoje@gmail.com


FELIPE LACERDA é profissional do cinema e da TV com filmes que já ganharam ou foram indicados para prêmios como Oscar, Bafta, Urso de Ouro, Golden Globe e Emmy. Tem mestrado em negócios pelo IBMEC e formação em Cinema pela New York Film Academy.

Seu interesse pela inteligência artificial e a consciência humana começou na adolescência, quando começou a ler sobre esses temas. Quando o assunto chegou ao grande público, concentrou- se em duas áreas: a estratégica, que trata das consequências cognitivas, políticas, econômicas e socias; e a propriamente técnica, na qual concentra-se em Prompt Engineering e na IA Generativa para a criação de texto, música, imagens.




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