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Resposta Literária ao Fanatismo - Karla Monteiro

“A ideia do ferimento ainda não fizera o seu caminho até mim. Eu estava no chão, de barriga para baixo, os olhos ainda fechados, quando ouvi o barulho dos tiros se separar totalmente da farsa, da infância, do desenho e se aproximar do poço ou do sonho em que eu me encontrava. O sujeito que caminhava até o fundo da sala e na minha direção atirava uma vez e dizia: “Alá akbar!”. Atirava outra vez e de novo repetia: “Alá akbar!””.

Poucos livros me impressionaram tanto nos últimos tempos: “O Retalho”, do francês Philippe Lançon, é um relato fraturado, com detalhes reveladores, do massacre ocorrido na redação do satírico jornal francês Charlie Hebdo, em 7 de janeiro de 2015. Contrastando com a brutalidade do ataque, que deixou 12 mortos e 11 feridos, a prosa erudita de Philippe Lançon cai como uma resposta literária ao fanatismo.

À violência dos vingadores, ele oferece delicadeza, ironias, paradoxos, conexões afetivas, reflexões, humor – humor francês, diga-se. Enquanto lá fora, no mundo dos vivos, gritavam “Je Suis Charlie”, é um homem lutando para entender o seu próprio mundo irremediavelmente transformado. As prodigiosas abstrações e os passeios interiores descascam as consequências do radicalismo que o encerrou em hospitais por 282 dias e 17 cirurgias.

Je Suis Charlie

Naquela manhã, quando entrou pela última vez no decadente prédio da Nicolas-Appert, Paris, segundo Lançon, não era Charlie. Havia sido, até o momento das caricaturas de Maomé, em 2006. Agora o jornal sobrevivia de alguns poucos fiéis leitores. A empinada esquerda francesa o abandonara à própria sorte. Os radicais, afinal, não deviam ser atiçados. Na opinião de Lançon, a julgar pelo estado dos jornais menos disciplinados, a França era uma “democracia em péssimas condições”.

A reunião começou no horário de sempre, por volta das 10h30. Ao sair de casa, pedalando a velha bicicleta que herdara do pai, Lançon ainda não sabia se passaria primeiro na redação do Libération, para escrever a crítica cultural da semana, ou se ia direito para a redação do Charlie Hebdo. No caminho, parara para comprar um iogurte e tomara a decisão que o colocava ali, na Nicolas-Appert, “entre a praça da Bastille e a da République, entre a Revolução e a Comuna”. Chegou alguns minutos atrasado.

A busca dos instantes que costuram a trágica manhã é uma obsessão do autor. Cada minúcia lhe importa. Eram 11h15, talvez 11h28, quando se levantou, vestiu o casaco, e se preparou para seguir, enfim, para o Libération. “Se Cabu não tivesse feito seu desenho, eu não teria parado para lhe mostrar o livro de jazz que me fizera lembrar dele. Se não tivesse parado para mostrar o livro, eu teria saído dois minutos antes e teria me deparado, na escadaria, refiz este cálculo cem vezes, com os dois assassinos”.

Entre os mortos

“Quando a morte não é esperada, quanto tempo se leva para sentir a sua chegada?”. Deitado de bruços, com a cabeça virada para a esquerda, Lançon tinha à frente dos olhos os miolos de Bernard Maris saltando para fora do crânio. Também via as calças pretas, circulando pela sala: “Alá-akbar!”. “Alá-akbar!”. Os mortos se davam as mãos. O pé do primeiro tocava a barriga do segundo, cujos dedos tocavam o rosto do terceiro, que pendia para o quadril do quarto.

“Houve mais tiros, alguns segundos se passaram, outros “Alá-akbar!”. Tudo era ao mesmo tempo nebuloso, nítido e desarticulado”.

Assim que o silêncio desabou sobre a sala e Lançon sentiu que o assassino – ou assassinos, não tinha certeza – saiu pela porta ele se pôs de lado, depois ergueu o tronco e se encostou na parede. Não sabia que um terço da sua face havia sido dilacerado e os dois braços rasgados a bala. Quase embaixo da mesa, repousava o corpo praticamente decapitado de Maris e, logo ao seu lado, de costas, o de Tignous. Os dedos deste seguravam uma caneta, na posição vertical, indicando o estupor que precedeu a execução.

Expressão da liberdade

Da primeira à última página, quase 500 ao todo, “O Retalho” surpreende. Com o mundo reduzido a uma cama de hospital, Lançon ouve os ecos do que se passa lá fora: as passeatas, a caçada aos criminosos, a condenação do terror, a absolvição do Charlie Hebdo. Mas não está interessado em nada disto. Sua mandíbula não para de vazar. A sonda pela qual se alimenta causa-lhe coceiras no nariz. Tem um tubo na garganta. Mal consegue respirar. Não pode falar. E só conta com três dedos intactos para escrever bilhetes e versos.

Sobretudo, a obra é um belo exercício da liberdade de contar uma história, seguindo o fluxo da memória. O ir e vir que resulta num livro profundamente civilizatório. “O Retalho” passa léguas do que se poderia esperar dele: um libelo em favor da liberdade de expressão. Em raros momentos, Lançon destila sarcasmo ideológico. Sua birra é com os “gurus culturais”. A falta de solidariedade destes teria contribuído para isolar o Charlie Abdo e transformá-lo em alvo dos radicais islamitas.

“Um jornalzinho que tinha uma grande história, e seu humor, felizmente, fizera mal a um número incalculável de imbecis, fanáticos, burgueses, celebridades, pessoas que se levavam a sério”, escreveu. “Os assassinos lhe conferiram, subitamente, um estatuto simbólico e internacional que nós, seus produtores, preferiríamos dispensar”.

Lançon est Charlie!




KARLA MONTEIRO nasceu em Diamantina (MG). Formou-se em jornalismo pela PUC-Minas, trabalhou nos jornais Estado de Minas, Folha de S.Paulo e O Globo e nas revistas Veja, Trip/ TPM, entre outras. É autora de Karmatopia: Uma viagem à India, coautora de Sob pressão: A rotina de guerra de um médico brasileiro e autora de Samuel Wainer: o homem que estava lá.

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