Desde criança, tenho medo da loucura. Ao mesmo tempo, medo e atração. A loucura esconde algo de sublime, de puro, de libertário. Então, eu conheci Maura Lopes Cançado. E, a partir dela, a loucura ficou ainda mais digna.
Engraçado, a primeira vez que ouvi falar da Maura logo me viera à cabeça uma amiga de adolescência, Paulinha Lopes Cançado, a mais linda bailarina que já vi dançar, estrela do Grupo Corpo por três décadas. São parentes distantes, Paulinha me disse.
Maura, escritora com apenas dois livros publicados, morreu louca, no manicômio judiciário.
Em duas obras, desbravou a fronteira entre o aqui e este além, que a gente tem tanto pavor de alcançar.
“Morreu esquecida e conformada”, escreveu Carlos Heitor Cony sobre Maura, que, na sua breve e brilhante carreira, fora comparada a Clarice Lispector: “Clarice, de certa forma, viveu em sua redoma. Maura, não. Maura não é peixe de aquário: é peixe de oceano, que vai fundo”.
Os títulos dos livros dela pegam pela estranheza: “Hospício é Deus”, o diário publicado em 1965, e a coletânea de contos “O Sofredor do Ver”, de 1968. Ambas as obras, antes raridades de sebos, foram relançadas em 2015 pela editora Autêntica, numa caixa preciosa, que comprei e guardei. Agora, a Companhia das Letras acabou de fazer outro relançamento. Até difícil explicar o impacto de Maura Lopes Cançado. Ela nos faz duvidar do significado de sanidade. Filha de abastada família mineira, veio morar no Rio nos anos 50. A partir de 1958, passou a integrar a equipe do badalado suplemento dominical do JB, ao lado de Cony, Ferreira Gullar, Reynaldo Jardim, Assis Brasil. Porém, sua instabilidade emocional sempre a levava de volta ao mesmo lugar: o hospício.
“Acho-me na seção Tillemont Fontes, Hospital Gustavo Riedel, Centro Psiquiátrico Nacional, Engenho de Dentro, Rio. Vim sozinha. O que me trouxe foi a necessidade de fugir para algum lugar, aparentemente fora do mundo”, escreveu nas primeiras páginas do diário. O relato começa na infância de menina mimada, com crises agudas de angústia e de euforia. Segue pelos primeiros anos de juventude, em Belo Horizonte, morando num hotel de luxo e protagonizando escândalos. Até desembarcar na capital federal. “Quanto tempo trabalhei no jornal? Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar, Assis Brasil, e tantos outros, meus protetores. Quase todos os bons intelectuais da nova geração. É de rir. Protetores no bom sentido, como diriam. Mas que bom sentido, se me fizeram sofrer tanto? Como chegar a eles, sem desespero?”.
Tanto o “Hospício é Deus”, quanto “O Sofredor do Ver” foram lançados enquanto Maura permanecia na instituição da zona norte carioca, onde a psiquiatra Nise da Silveira iniciava a sua revolução no tratamento mental. No diário, Maura vai construindo, com extrema habilidade literária, ao mesmo tempo, a protagonista, ela própria, e os fascinantes coadjuvantes: pacientes, enfermeiras, psiquiatras. Se o desejo de Maura era sair do mundo ao adentrar o hospício, ela se percebe prisioneira de outra sociedade. A sociedade das doidas, também regida por imposições de comportamento e pela lógica repressora da qual ansiava escapar. Na obra, denuncia a violência da rotina no manicômio, enveredando também para a autoironia, o desconcertante, a poesia da loucura.
“Consegui escandalizar o Carlos Heitor Cony, que já foi padre, e é facilmente escandalizável. Além de julgar estar ferindo o Reynaldo, ao falar coisas inverossímeis e degradantes ao meu respeito. Algo em que pensar: se tem alguma afetividade por mim deve ter sofrido. Como me destruí. Falei de mim tantas vilezas. Já fiz isto com mamãe. Estou muito cansada”.
Linda, sensual, elegante e culta – e plenamente consciente do poder da sensualidade, Maura impõe à própria trajetória um sentido libertário. Nos contos que compõem a coletânea “O Sofredor do Ver”, transborda, borra as margens, numa linguagem visual e surrealista. “O Quadrado de Joana”, o conto que lhe dera fama, publicado originalmente na capa do caderno de domingo do JB, é uma obra prima, que nos faz literalmente enxergar a esquizofrenia. Em 1972, já desfigurada pelos eletrochoques, Maura teria o seu episódio – que Cony definia como “surtos de uma força escura” e ela como “fase crepuscular” – mais extremo. Numa noite de abril, estrangulou e matou uma paciente na Clínica de Saúde Doutor Eiras, em Botafogo. Julgada e considerada inimputável, terminaria a vida no Hospital Penal da Penitenciária Lemos Brito.
“O que me assombra na loucura é a distância – os loucos parecem eternos. Nem as pirâmides do Egito, as múmias milenares, o mausoléu mais gigantesco e antigo possui a marca de eternidade que ostenta a loucura. Diante da morte não sabia para onde voltar-me: inelutável, decisiva. Hoje, junto dos loucos, sinto certo descaso pela morte: cava, subterrânea, desintegração, fim”.
KARLA MONTEIRO nasceu em Diamantina (MG). Formou-se em jornalismo pela PUC-Minas, trabalhou nos jornais Estado de Minas, Folha de S.Paulo e O Globo e nas revistas Veja, Trip/ TPM, entre outras. É autora de Karmatopia: Uma viagem à India, coautora de Sob pressão: A rotina de guerra de um médico brasileiro e autora de Samuel Wainer: o homem que estava lá.
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