Eles caminham pelas mesmas calçadas. Frequentam as mesmas praias. Admiram os mesmos monumentos. A diferença está no desejo. Na forma. Na atitude. Na fome. O turista quer absorver para levar para casa, para partilhar com os seus, para construir referências culturais e estéticas que lhe possibilite crescer e aprofundar raízes no seu lugar.
O viajante não deixou nada para trás. A estrada é o seu modo de vida. Ele se mistura, não absorve, deixa-se absorver. O tempo de um e o tempo de outro são tempos que trotam em velocidades distintas. O turista tem pressa, tem cronograma, tem agenda. E tem a alegria de voltar para casa. Lá e cá, não se fundem. O viajante tem o tempo ao seu dispor. Não vai para outro lugar, muda-se de lugar. O preço do tempo, porém, é não ter casa para voltar. Seu lugar é lugar nenhum.
Em “Trem Fantasma para a estrela do oriente”, Paul Theroux, o mestre da viagem, escreveu: “Viajar inclui a possibilidade mágica da reinvenção. Num lugar distante ninguém o conhece – quase sempre uma vantagem adicional. E você pode fingir ser diferente da pessoa que costuma ser, descomprometido, enigmático, mais jovem, rico ou pobre, enfim, qualquer um que escolha ser, no renascimento que muitos viajantes experimentam quando vão suficientemente longe”
Na Índia, onde passei, ao todo, quase um ano inteiro para escrever “Karmatopia – Uma Viagem à Índia”, eles, os viajantes, são muitos, hordas. Encontrei pelo caminho mais viajantes do que turistas. Ou não. Mas os turistas passam... O viajante está lá: veteranos que foram suficientemente longe; jovens em busca de haxixe e raves; e desbravadores da Disneylândia espiritual. Muitos personagens que deixariam Jack Kerouac comendo poeira.
Joel, um francês de 60 e poucos anos, dono de um charme regado a bons vinhos, foi um deles. Amizade à primeira vista. Ele falava hindu, comia com as mãos, tomava o seu chai de cócoras. Fazia-se indiano sem deixar de ser francês. Tudo com a naturalidade de quem superara fronteiras.
Contava quatro décadas de longas viagens à Índia. A primeira foi em 1967. “A trilha pelo Oriente Médio começou a ficar famosa em 1965. A verdade estaria aqui. Mas a verdade é que a verdade não estava em lugar nenhum”, ele me disse, numa tarde em que olhávamos o mar da Arábia, numa cidadela do Kerala.
Na primeira viagem, Joel seguiu a rota que todos seguiam, a rota Flower and Power: Itália, Iugoslávia, Grécia, Turquia, Irã, Afeganistão, Paquistão e Índia. Foi por terra, usufruindo do tempo como bem entendia. Na Turquia, decolou para não mais aterrissar: “Fumei haxixe pela primeira vez, experimentei ópio, passava o dia nos grandes bazares. E o cheiro? A coisa estava no cheiro. O cheiro do Oriente”.
Atravessou o Irã á pé, com uma caravana de nômades. Ao chegar a Cabul, no Afeganistão, tomou a decisão que traçaria o porvir: “O maior bazar entre oriente e ocidente. Peles de animais, madeira, porcelana, incensos indianos, tapetes persas, joias, camelos, milhares de pessoas de várias tribos. Eu era um garoto de Paris, uma cidade tão artificial. Lembro-me de pensar: vou vagar para sempre”.
Eu me apaixonei pelo Joel. Sempre que nos sentávamos para conversar eu pensava em como era fascinante a vida do viajante sem o Lonely Planet. Os desbravadores, os pré-Lonely Planet tinham direito ao mergulho vertical. Eu morria de inveja disso. Vivia um tempo sem direito a surpresas, o tédio da globalização.
Como aprendiz de Joel, percorri a Índia. De avião, de ônibus, de trem, de barco, de riquixá, de tuk-tuk, a pé. Abri o leque das experiências. As espirituais, nos retiros de yoga e meditação. As físicas, nos processos de purificação da medicina ayurvédica, com suas purgações inacreditáveis. As psicodélicas, com o haxixe negro indiano. As filosóficas, em bate-papos com mestres, gurus e sadhus. E as mundanas, no caos do dia a dia indiano.
Na volta para casa, a casa não mais existia. A essência do viajante talvez seja esta: o mundo é a casa. Ou a busca dela. Busca que pode consumir várias vidas de viagens frenéticas.
O turista deve ser mais contente. Não sei. Nunca consegui ser turista, sempre tive preguiça de correr contra o tempo. Quando detecto um turista, com sua câmera em punho e sua pressa de consumir, confesso: torço o nariz, contraditoriamente também por inveja. Fazer turismo é entregar-se ao conforto, é lidar com o previsível, é ser feliz por sete dias e seis noites em Veneza.
Ser viajante é correr o risco de se perder no caminho.
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