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Trilha para a delicadeza - Karla Monteiro

Em “Léxico Familiar”, Natalia Ginzburg nos ensina a sobreviver ao obscurantismo


Muito tem se falado de Annie Ernaux, a francesa que levou o Nobel de Literatura no ano passado. Eu não a conhecia até então. De lá para cá, li dois de seus livros, "O Lugar" e "O Acontecimento". O mais comovente na obra dela, para mim, é oferecer a própria vida, as próprias dores, para nos dar voz. Em "O Acontecimento", aliás, o estilo intransigente se põe inteiro a serviço da politização do aborto, partindo da saga pessoal em busca de um faiseuse d’anges na França de 1963. Mas, na verdade, eu queria falar de outra autora, que, assim como Ernaux, também se aventurou neste difícil gênero, a escrita do Eu: a italiana Natalia Ginzburg. Desde que a conheci, ela saltou para o topo da minha lista de escritoras fundamentais. Se está procurando algo para ler, leia: “Léxico Familiar”.


Há muito tempo eu não pensava tanto no meu pai – e nas piadas repetidas do meu pai – como pensei lendo este livro tão delicado, tão apurado, tão hilário, tão familiar. Costurando memórias, frases, palavras, gestos, comportamentos dos pais e irmãos, Natalia reconstrói o galope do nazi-fascismo na Europa dos anos 30 até desaguar na Segunda Guerra. A originalidade mora na simplicidade, na forma despretensiosa e desprovida de idealização com que vai juntando os cacos. Talvez seja a simplicidade, por sinal, a deixar a impressão de que, afinal de contas, toda família tem um léxico. E poderia dar um romance.

“Léxico Familiar” conta a história de uma família judia de Turim. O pai, um cientista rabugento, antifascista desiludido, disposto a demolir tudo e todos, com frases de efeito. A mãe, uma otimista de nascença. Natalia é a caçula de cinco irmãos. Do ponto de vista da mais nova, ela vai vendo a vida passar, colhendo as sutilezas que os une. “Uma dessas frases ou palavras faria com que nós, irmão, reconhecêssemos uns aos outros na escuridão de uma gruta, entre milhões de pessoas”, escreveu Natalia. “Essas frases são o nosso latim, o vocabulário de nossos tempos idos é como os hieróglifos dos egípcios ou dos assírio-babilônicos, o testemunho de um núcleo vital que deixou de existir, mas que sobrevive em seus textos, salvos da fúria das águas e da corrupção do tempo”.


O tempo adverso que lhe coube viver é o pano de fundo. Natalia não está interessada em fazer um registro histórico da tumultuosa primeira metade do século 20. Está interessada nas pessoas – e em como elas insistem em existir mesmo quando tudo ao redor lhes diz que não vale a pena. Ao longo da narrativa, vamos acompanhar, no passo da escalada do nazi-fascismo, o dia a dia dos Levi, com cenas cotidianas que fazem rir e chorar, que nos levam para a cozinha. Enquanto casamentos acontecem, filhos nascem, os irmãos se engajam na resistência. Um deles protagoniza uma fuga espetacular para a França. O pai é preso. A guerra chega à Itália. “Nós achávamos que a guerra iria virar e revirar imediatamente a vida de todos. Durante anos, ao contrário, muita gente permaneceu sem ser incomodada em sua casa, continuando a fazer o que sempre fizera”, contou, num dos raros momentos em que descreve o conflito. “De repente, quando cada um já achava que no fundo se livrara por pouco e não haveria nenhum transtorno, explodiram bombas e minas por toda parte e as casas desabaram, as ruas se encheram de ruína e de fugitivos. (...) Na Itália a guerra foi assim”


Em meio ao caos, Natália se casou com Leone Ginzburg, que anos antes fundara com o escritor Cesare Pavese uma pequena editora. Com ele, teve dois filhos. Marcado pelo regime de Mussolini, o marido entrava e saia da cadeia, até morrer na ala alemã dos cárceres de Regina Coeli, em Roma, durante a ocupação nazista. Ao terminar de ler “Léxico Familiar”, o meu sentimento foi de profunda gratidão por ter lido este livro, neste momento em que o mundo parece estar, de novo, atravessando as trevas do obscurantismo. Obrigada, Natália, por me apontar a trilha da delicadeza.




KARLA MONTEIRO nasceu em Diamantina (MG). Formou-se em jornalismo pela PUC-Minas, trabalhou nos jornais Estado de Minas, Folha de S.Paulo e O Globo e nas revistas Veja, Trip/ TPM, entre outras. É autora de Karmatopia: Uma viagem à India, coautora de Sob pressão: A rotina de guerra de um médico brasileiro e autora de Samuel Wainer: o homem que estava lá.


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